terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Lindinho

O meu carro está velho. O facto de a dona ser uma mulher nada interessada em mecânica não ajuda. Já não aguenta viagens grandes sem dar sinal de exaustão.

Hoje precisei de sair e deixei-o em Évora. Quando voltei lá estava ele. Veio-me à cabeça o Porto Sentido do Rui Veloso: "Ver-te assim, abandonado, nesse timbre pardacento, nesse teu jeito fechado, de quem mói um sentimento. E é sempre a primeira vez, em cada regresso a casa, rever-te nessa altivez de milhafre ferido na asa".

Estava todo salpicado. A passagem de outros carros por uma poça de água próxima deixou as suas marcas. Fui lavá-lo. Revi a amolgadela que lhe fiz  numa manobra junto a uma pedra de grande dimensão à esquina da rua Bica dos Quartéis, onde morei há 15 anos. Revi os vestígios de uma pastilha elástica que o meu filho Pedro resolveu atirar pela janela numa das nossas viagens, em pleno movimento, e que ficou colada ao vidro. Revi a marca de uma pedrinha que saltou de um camião para o vidro da frente quando ele tinha apenas 2 semanas nas minhas mãos. Vi o sítio da peça que caiu porque a minha filha Inês anda nas calçadas de Évora à mesma velocidade que circula na estrada alcatroada. Revi as marcas do estacionamento aqui na rua estreita onde moro nos primeiros dias de carta da minha filha Mariana,  ao lado dos que eu própria fiz numa fase em que ele se desligava em andamento e bloqueava a direcção.

Revi as viagens que fizemos os quatro, para conhecer o país,  nas nossas férias.  Revi as horas sozinha, por trás do volante, em deslocações para dar formação,  para vir à Universidade ou a caminho da Biblioteca Nacional.  Revi os quilómetros feitos a caminho de Alvalade. Revivi o dia em que o fui buscar ao stand. A primeira coisa que comprei sozinha, quando a minha vida deu a volta.

"Ainda tens este carro?" perguntam-me às vezes.  Sim. Já estive a milímetros de o trocar mais do que uma vez. Não consigo. Enquanto andar, continuará a ser o meu carrinho, o meu "lindinho".

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